terça-feira, 29 de janeiro de 2013

SOBRE AS TRAGÉDIAS




Tal e qual a vontade, a dor não é delegada sem ser destruída. A dor é mais que íntima. A dor é mais que próxima. Mesmo a dor nova já é semente inseparável, entranhada na humanidade de nossa condição bem antes de nascida.

Eu não posso falar sobre dor alheia. Posso falar sobre o que a dor alheia me provoca. Como a centelha de Cronos devorando a existência próxima, observamos lágrimas, faces desamparadas, gritos ou féretros silenciosos – manifestações inúmeras – traduções aproximadas de uma chaga ainda sem nome.

Michel de Montaigne em seus Ensaios, conta a passagem de Psametico, rei do Egito vencido por Cambises da Pérsia, que emudeceu ao ver seu filho ser executado, mas que chorou ao ver seu criado seguir para a tortura. Foi perguntado por que só demonstrou sentimento pelo criado, no que respondeu “É que só esta última tristeza é suscetível de se exprimir por lágrimas”.

            Todos morrerão. Muitos enterrarão seus pais. Alguns enterrarão seus filhos. Dentre os poucos que enterraram os filhos, vários deles moram em Santa Maria. Maria: arquétipo da dor materna, mulher que sepultou o filho.

Não tenho filhos. Sepultei meu pai. Enquanto velava o corpo de meu pai, assistia minha avó velar o corpo de seu filho. Ali, minha avó era La Pietà de Michelangelo, que visitada por mim há alguns anos na Basílica de Pedro, visitava então, a minha casa.

La Pietà, que visitou minha família em 11 de maio de 2012, visitou centenas de famílias em 27 de janeiro de 2013. La Pietà não estava em mármore carrara, estava em carne, som e cor. Estava no Rio Grande do Sul. Estava na generalização da dor absurda, nos pais que enterravam seus meninos – também traídos por um Beijo disfarçado noutra língua.

A vida é um conjunto de experiências e um horizonte de expectativas. Não há como fugir da possibilidade da tragédia. Todos nós somos Édipo, heróis de nossa própria jornada. Aguardamos a qualquer momento, por destino ou por acaso, o encontro com o imponderável.

Transitando entre guerras, pestes ou incêndios, por desastres criminosos ou não, por eventos cristalizados em livros de história, ou em peripécias cotidianas que só fazem sentido em nossa mitologia íntima, o abraço imprevisível do pedaço do futuro que não pode ser controlado nos aguarda.

No mundo da alegria compulsória, a felicidade chega em caixinhas com tarja preta. Nossa alegria traja luto. Fugimos de nossa dor como quem repudia a própria sombra.

Em poucos dias, os meios de comunicação que espetacularizam a dor de centenas de famílias se cansarão de Santa Maria. Um carnaval bate em nossa porta. É possível que eu esteja numa praia com minha família. Não me lembrarei que tragédia vem do grego e significa o berro doloroso de um bode. Não me lembrarei de tragédias ou bacantes. Mas é possível que entre uma dose de vodca e outra, eu diga “Evoé Baco”. Talvez um frevo dissimule meu desconforto.

Não consigo verbalizar o que o sofrimento alheio me ensina. Desculpe, não tenho lições para tragédia alguma.


4 comentários:

  1. Excelente reflexão, Rodrigo!

    Com certeza, as lições são muitas. O grande ponto é que, as pessoas "abertas" a aprender com o sofrimento alheio, às vezes nem percebe o tamanho da mudança.

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  2. Texto maravilhoso, adorei as referências. Também gostei muito do que ele expressa. Sei que houve uma pietà em minha família antes de eu nascer. Praticamente chorei em vários relatos da tragédia aludida não tanto por poder visualizar a mim e a conhecidos meus nela, mas por visualizar o quanto minha mãe ficaria triste e desolada se eu morresse. Paixão também significa sofrimento.
    A mídia tanto tem paixão pelo sofrimento atroz, como pelos prazeres mundanos. Apesar de que cada um tem uma reação diferente, e mesmo que haja a espetacularização, é como se essa mesma paixão nos unisse pela nossa própria condição de humanos dotados de sentimentos e que a qualquer momento podemos ter nossos corpos perfurados pelo fogo do destino(ou a quem acreditarque o fogo pertença, se ao próprio mundo por ser mundo, a Deus, ou a algo inominável).
    Mesmo que não sejamos nós a termos o ar roubado, a visualização de uma tragédia dessa por alguns momentos rouba o ar de nossas almas, impossível ser dotados de sentimentos e não sentir nada.

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  3. Antes de tudo, parabéns pela iniciativa do blog. A net precisa de pessoas como você:
    sábio, mas que transmite com esmerada simplicidade sua mensagem; lúcido, mas que permite ao leitor viajar, constrastar tal mensagem com a sua realidade, propiciando modificar/reciclar/aperfeiçoar seus pontos de vista; sincero ao expor sua opinião, mas que não ofende, não atenta contra os argumentos de quem pensa de forma contrária. Do fundo do coração, todo o sucesso. Você é merecedor!
    No tocante ao texto, verifico uma reflexão equilibrada sobre a dor vivenciada por nossos conterrâneos gaúchos, dor contida, sofrida, revoltante, frente ao reality show propiciado pela mídia sensacionalista, a qual sobrevive da notícia mais inédita.
    Verifico um texto transbordante de sentimento e altamente sedutor ao leitor porquanto, todos nós, já vivenciamos e iremos vivenciar nesta estada humana, momentos que vão desde a felicidade de um nascimento até a sofrimento da morte.
    Propicia a reflexão sobre nossa origem, nossa missão e nosso destino, pós vida.

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  4. Texto incrível.
    Blog já está nos favoritos!
    Parabéns, professor, por dividir sua sabedoria por mais um meio!

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