domingo, 26 de janeiro de 2014

O PIANISTA DO SILENCIOSO - comentário sobre o livro

                                   Livros autografados nos dão uma tranquilidade mórbida. É algo que só encontrará a plenitude do seu valor quando o autor nunca mais puder assinar nada. E somente ali, quando a outra testemunha sumir, sem a preocupação do contraditório, poderemos tecer as mais belas narrativas em torno da aquisição do livro e da história do autógrafo. “Ora, eu não comprei esse livro, ele me foi presenteado pelo próprio escritor e acompanhado de outro presente. Uma gentileza!”. Pois bem, comigo foi assim – e quem sabe um dia, sob o bronze da memória, também possa emprestar ainda mais nobreza àquilo que já nasce clássico: “O Pianista do Silencioso”, romance de Carlos Nealdo dos Santos. Edufal, 2007.

                                   O romance orbita no universo do cinema mudo, ou pelo menos como ele era vivido no sertão brasileiro nas décadas de 1910 e 1920. Naqueles tempos pianistas embalavam os filmes exibidos, garantindo em ritmos, harmonias e melodias toda a aura de emoções da película. Daí o título.

                                   É um livro bonito. Uma capa preta envolve o ótimo papel amarelo diagramado com esmero. Parece uma metalinguagem dum filme que se inicia: o escuro da tela (a capa) a variação clara do espetáculo (as folhas).

                                   O livro segue a linha de romance histórico, misturando fatos históricos com fictícios. Alternando em três palcos (Manhattan, Recife e Rio Branco) e o autor se liberta dos grilhões do real para as asas do fantástico quanto mais mergulha no interior. A narrativa flui na cosmopolita Manhattan ou na grande Recife, mas é nas brenhas do sertão pernambucano, em Rio Branco que se esconde a alma do livro. Uma cidade que poderia ser prima da Macondo de “Cem Anos de Solidão” (Gabriel Garcia Marquez).

                                   O livro é rico em cheganças e partidas inesperadas. Imaginei cá comigo se Al Jolson (astro do cinema mudo e judeu) ao desembarcar em Recife soubesse que parentes seus no século XVII partiram do porto daquela cidade que nunca ouvira falar para fundar Nova Iorque.

                                   Pensei noutro parentesco. Pensei que Xié (personagem) também é parente de João Grilo e Cancão de Fogo. Está no cromossomo de suas safadezas. Mas Xié é ainda mais próximo dos arlequins da commedia dell arte. A ponte que Xié fez entre Biana (matuta bonita e donzela) sobre o paradeiro de Dago (o pianista) me fez recordar docemente da peça “Arlequim Servidor de Dois Amos”, escrita por Carlo Goldoni. A diferença entre Xié e os arlequins, é que os arlequins possuem uma personalidade pronta: não amadurecem, não mudam e não se emendam. Xié, por sua vez, é um arlequim que deixa de ser bobo e fica besta. Xié traz em si a tragédia (no sentido grego) do cinema. A jornada que separa o silêncio da fala, o apelido despeitado do nome imponente, a jornada que separa o nada do entendimento é permeada pelo dístico do progresso que se abraça ao desencanto.

                                    Há muita nostalgia aqui. Mas não esperem uma nostalgia vibrando como Woody Allen em “Meia-Noite em Paris”. Senti algo mais familiar a Michel Hazanavicius no seu conhecido “O Artista”. Há encanto, mas há, sobretudo, uma atmosfera de Augusto dos Anjos, no poema Cismas do Destino:


Recife. Ponte Buarque de Macedo.
Eu, indo em direção à casa do Agra,
Assombrado com a minha sombra magra,
Pensava no Destino, e tinha medo!


                                             Pianista do Silencioso é fruto de uma sólida pesquisa de Carlos Nealdo dos Santos. Por vezes há um certo preciosismo em biografar personagens reais do cinema e descrever certas sagas que acaba se afastando da trama. Mas essa viela se converte numa avenida de mão dupla e o Pianista do Silencioso se trona um poderoso guia para o cinema mudo. Eu elaborei uma lista de filmes baseado no livro. Muitos eu não conhecia.


EPÍLOGO


                                            Uma apresentação saudosa de Cacá Diegues precede o início do romance. Isso confere autoridade. Um romance sobre cinema prefaciado por Diegues impõe respeito. Porém, uma dedicatória precede o prefácio: “Para Isa, feminino de Paraíso”. Foi ali que o livro me ganhou e a arte entrou em obra. Gosto de Cacá Diegues, mas gosto ainda mais de aliterações.






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