Livros
autografados nos dão uma tranquilidade mórbida. É algo que só encontrará a
plenitude do seu valor quando o autor nunca mais puder assinar nada. E somente
ali, quando a outra testemunha sumir, sem a preocupação do contraditório, poderemos
tecer as mais belas narrativas em torno da aquisição do livro e da história do
autógrafo. “Ora, eu não comprei esse livro, ele me foi presenteado pelo próprio
escritor e acompanhado de outro presente. Uma gentileza!”. Pois bem, comigo foi
assim – e quem sabe um dia, sob o bronze da memória, também possa emprestar
ainda mais nobreza àquilo que já nasce clássico: “O Pianista do Silencioso”,
romance de Carlos Nealdo dos Santos. Edufal, 2007.
O
romance orbita no universo do cinema mudo, ou pelo menos como ele era vivido no
sertão brasileiro nas décadas de 1910 e 1920. Naqueles tempos pianistas embalavam
os filmes exibidos, garantindo em ritmos, harmonias e melodias toda a aura de
emoções da película. Daí o título.
É
um livro bonito. Uma capa preta envolve o ótimo papel amarelo diagramado com
esmero. Parece uma metalinguagem dum filme que se inicia: o escuro da tela (a
capa) a variação clara do espetáculo (as folhas).
O
livro segue a linha de romance histórico, misturando fatos históricos com
fictícios. Alternando em três palcos (Manhattan, Recife e Rio Branco) e o autor
se liberta dos grilhões do real para as asas do fantástico quanto mais mergulha
no interior. A narrativa flui na cosmopolita Manhattan ou na grande Recife, mas é nas brenhas do sertão pernambucano, em Rio Branco que se esconde a alma do livro.
Uma cidade que poderia ser prima da Macondo de “Cem Anos de Solidão” (Gabriel Garcia
Marquez).
O
livro é rico em cheganças e partidas inesperadas. Imaginei cá comigo se Al
Jolson (astro do cinema mudo e judeu) ao desembarcar em Recife soubesse que parentes
seus no século XVII partiram do porto daquela cidade que nunca ouvira falar
para fundar Nova Iorque.
Pensei
noutro parentesco. Pensei que Xié (personagem) também é parente de João Grilo e
Cancão de Fogo. Está no cromossomo de suas safadezas. Mas Xié é ainda mais
próximo dos arlequins da commedia dell
arte. A ponte que Xié fez entre Biana (matuta bonita e donzela) sobre o
paradeiro de Dago (o pianista) me fez recordar docemente da peça “Arlequim
Servidor de Dois Amos”, escrita por Carlo Goldoni. A diferença entre Xié e os arlequins,
é que os arlequins possuem uma personalidade pronta: não amadurecem, não mudam
e não se emendam. Xié, por sua vez, é um arlequim que deixa de ser bobo e fica besta. Xié
traz em si a tragédia (no sentido grego) do cinema. A jornada que separa o
silêncio da fala, o apelido despeitado do nome imponente, a jornada que separa
o nada do entendimento é permeada pelo dístico do progresso que se abraça ao
desencanto.
Há
muita nostalgia aqui. Mas não esperem uma nostalgia vibrando como Woody Allen
em “Meia-Noite em Paris”. Senti algo mais familiar a Michel Hazanavicius no seu
conhecido “O Artista”. Há encanto, mas há, sobretudo, uma atmosfera de Augusto
dos Anjos, no poema Cismas do Destino:
Recife. Ponte Buarque de Macedo.
Eu, indo em direção à casa do Agra,
Assombrado com a minha sombra magra,
Pensava no Destino, e tinha medo!
Pianista do Silencioso é fruto de
uma sólida pesquisa de Carlos Nealdo dos Santos. Por vezes há um certo
preciosismo em biografar personagens reais do cinema e descrever certas sagas
que acaba se afastando da trama. Mas essa viela se converte numa avenida de mão
dupla e o Pianista do Silencioso se trona um poderoso guia para o cinema mudo.
Eu elaborei uma lista de filmes baseado no livro. Muitos eu não conhecia.
EPÍLOGO
Uma apresentação saudosa de Cacá
Diegues precede o início do romance. Isso confere autoridade. Um romance sobre
cinema prefaciado por Diegues impõe respeito. Porém, uma dedicatória
precede o prefácio: “Para Isa, feminino
de Paraíso”. Foi ali que o livro me ganhou e a arte entrou em obra. Gosto
de Cacá Diegues, mas gosto ainda mais de aliterações.
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