Tal e qual a vontade, a dor não é delegada sem
ser destruída. A dor é mais que íntima. A dor é mais que próxima. Mesmo a dor
nova já é semente inseparável, entranhada na humanidade de nossa condição bem
antes de nascida.
Eu não posso falar sobre dor alheia. Posso
falar sobre o que a dor alheia me provoca. Como a centelha de Cronos devorando
a existência próxima, observamos lágrimas, faces desamparadas, gritos ou féretros
silenciosos – manifestações inúmeras – traduções aproximadas de uma chaga ainda
sem nome.
Michel de Montaigne em seus Ensaios, conta a
passagem de Psametico, rei do Egito vencido por Cambises da Pérsia, que
emudeceu ao ver seu filho ser executado, mas que chorou ao ver seu criado
seguir para a tortura. Foi perguntado por que só demonstrou sentimento pelo
criado, no que respondeu “É que só esta última tristeza é suscetível de se exprimir
por lágrimas”.
Todos
morrerão. Muitos enterrarão seus pais. Alguns enterrarão seus filhos. Dentre os
poucos que enterraram os filhos, vários deles moram em Santa Maria. Maria:
arquétipo da dor materna, mulher que sepultou o filho.
Não tenho filhos. Sepultei meu pai. Enquanto
velava o corpo de meu pai, assistia minha avó velar o corpo de seu filho. Ali,
minha avó era La Pietà de Michelangelo, que visitada por mim há alguns anos na
Basílica de Pedro, visitava então, a minha casa.
La Pietà, que visitou minha família em 11 de
maio de 2012, visitou centenas de famílias em 27 de janeiro de 2013. La Pietà
não estava em mármore carrara, estava em carne, som e cor. Estava no Rio Grande
do Sul. Estava na generalização da dor absurda, nos pais que enterravam seus
meninos – também traídos por um Beijo disfarçado noutra língua.
A vida é um conjunto de experiências e um
horizonte de expectativas. Não há como fugir da possibilidade da tragédia. Todos
nós somos Édipo, heróis de nossa própria jornada. Aguardamos a qualquer
momento, por destino ou por acaso, o encontro com o imponderável.
Transitando entre guerras, pestes ou incêndios,
por desastres criminosos ou não, por eventos cristalizados em livros de
história, ou em peripécias cotidianas que só fazem sentido em nossa mitologia
íntima, o abraço imprevisível do pedaço do futuro que não pode ser controlado
nos aguarda.
No mundo da alegria compulsória, a felicidade
chega em caixinhas com tarja preta. Nossa alegria traja luto. Fugimos de nossa
dor como quem repudia a própria sombra.
Em poucos dias, os meios de comunicação que
espetacularizam a dor de centenas de famílias se cansarão de Santa Maria. Um
carnaval bate em nossa porta. É possível que eu esteja numa praia com minha
família. Não me lembrarei que tragédia vem do grego e significa o berro
doloroso de um bode. Não me lembrarei de tragédias ou bacantes. Mas é possível
que entre uma dose de vodca e outra, eu diga “Evoé Baco”. Talvez um frevo
dissimule meu desconforto.
Não consigo verbalizar o que o sofrimento
alheio me ensina. Desculpe, não tenho lições para tragédia alguma.